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segunda-feira, 28 de julho de 2025

Diários de Bordo - Amsterdam

 




 Mein eerst besuch naar Amsterdam


Cheguei com D. de comboio durante a tarde. 

Provínhamos de Utrecht cansados, comentando o típico nacionalismo holandês que parecia colidir de frente contra essa imagem que há muito nos era projetada, a de este ser um pais liberal, onde quase tudo era permitido. Talvez essa excessiva "liberdade" esteja a tornar-se progressivamente um "pau de dois bicos" e as pessoas estejam por sua vez lentamente a tornar se mais conservadoras. 

Tudo isto, simplesmente, por causa de um tipo que tinha acabado de passado por nós, todo equipado com as três cores nacionais holandesas. Segundo D. era normal algumas pessoas vestirem-se assim, sapatos vermelhos, calções azuis e camisola branca por exemplo.

 Eu sorria sarcasticamente, enquanto ouvia esta observação, nunca parava de surpreender me com todas essas idiossincrasias de cada povo, mesmo depois de vários dias seguidos a conviver com diversas culturas.

A meu ver para o artista todo o processo de procura sempre foi essencial, não digo nada de novo com isto, a vida imita a arte e vice-versa, construindo-se a partir daí um número mais elevado de recursos nos nossos discursos criativos. Quanto mais limitada for a enciclopédia mais limitado ou restrito será o discurso. 

Daí não conseguir mais inserir me num "nicho" em particular, seja no mundo "metaleiro" pois de apesar de continuar a gostar imenso de metal ao contrário de muitos não saí da barriga da minha mãe a ouvir Venom nem Celtic Frost, cresci a ouvir Beatles, Guns n ' Roses, Nirvana etc... 

Essa postura mais conservadora e limitadora (ou elitista) pode funcionar para um grupo restrito de pessoas, mas para isso é necessário haver alguém a querer integrar-se, quando vêm com tretas e elitismos para cima de mim a tendencia é afastar me. Já não há paciência. 

O essencial é poder extrair-se conhecimento através da experiência criando ao mesmo tempo formulas que permitam expor essas mesmas experiências, ser se artista a meu ver é  precisamente tentar descobrir a formula adequada para poder partilhar de forma vívida um testemunho dessas experiencias para a eternidade (...) 

Nos anos de adolescente confesso que passava muitas noites em claro -  não é que agora durma melhor, pois o sono agitado já há alguns anos que me é característica comum. Normalmente depois de acordar deslocava-me quase sempre até à varanda do meu quarto passando horas e horas a tentar ver algo mais além de toda a realidade que me era projetada pelas luzes das casas em redor. Muitas vezes nem uma única luz acesa havia, todos estavam dormindo e nada havia ali que permitisse ter uma melhor visão do mundo. Com isto dava por mim a divagar mentalmente entre eras anteriores - como a época dos finais do séc. XIX, a época dos dandy's, dos poetas malditos e de toda uma imensidão de movimentos artísticos (Surrealismo, Dadaísmo, etc). Quando não havia televisão todos os pilares culturais eram sempre mais exigentes, não defendo com isto elitismo ou presunção pois sempre detestei emproados e snobs. Apenas gostaria que houvesse mais curiosidade entre as pessoas, não apenas acerca do privado das pessoas mas sim sobre os seus interesses em particular, o desejo de partilha de música, que livros leram etc...em suma que desejassem sair mais vezes dos nichos culturais a que se habituaram e principalmente dos ambientes de "tasca" com todas as suas picardias futebolísticas (que gasto de energias e de tempo, quando se poderia discutir algo mais produtivo) tudo aquilo a que se pode de chamar "zonas de conforto" atrancadas a um determinado meio social. 

Criarmos "ondas de choque" seja através do conflito e provocação é sempre um mal necessário. Tem que haver sempre um maluquinho qualquer a jogar-se para o "front line" como que bode expiatório para a degola, pois só assim todos os nichos serão confrontados com outras realidades distintas e discordantes. Viver em sociedade é saber coexistir e conviver com a diferença e saber que necessariamente o outro não terá que estar impressionado ou sequer interessado em tudo aquilo fazemos ou tomamos com certo ou errado. 

Importa deixar claro que somos um precipício de mundos - mundos esses de que apenas revelamos pontas do iceberg...tirar conclusões precipitadas e castradoras acerca do outro apenas demonstra as nossas próprias limitações, não a pessoa em questão. 

Sim meu caro, é apenas para ti mesmo que tu estás a apontar o dedo. Não me conheces o suficiente para me julgares seja do for.

Foi este o meio que me foi dado neste mundo para se poder viver e digo isto principalmente em relação ao aspecto familiar, visto que a minha família é quase toda originária de uma pequena aldeia do interior alentejano, onde raras são as pessoas que têm mais do que a 4 classe. O facto de eu poder ter chegado a tirar um curso já poderia por si só ser visto aos olhos de alguns como privilegio, só que ninguém sabe ao certo como lá cheguei, os sacrifícios necessários etc.

Talvez seja aqui que o povo português fica muitas vezes a dever em comparação com outros países mais evoluídos, não é só a sua incrível falta de solidariedade com o próximo, a incapacidade de se elogiar alguém...é a incapacidade de entenderem que nem todos têm o mesmo background familiar o que por consequência influencia sempre o núcleo de amigos que se aglomeram em nosso redor ao longo dos anos. 

É a total falta de empatia e incapacidade de se conseguirem colocar no lugar do outro, ver como certos obstáculos condicionam e em vez de estender a mão, são ainda capazes de usar isso como beneficio próprio, só age assim quem normalmente se interessa demasiado por "status" ou lá o que isso seja...pois sabem igualmente de uma forma inconsciente que muitas vezes esses mesmos "status" foram sendo alcançados mais à custa de ajudas e favores do que mérito próprio. 

A meu ver esses é que são os verdadeiros parasitas, não os que apenas procuram o seu espaço sem que para isso tenham que se prostituir ou venderem as suas almas. 

Creio que importa, no entanto, sempre reforçar e realçar a importância das pessoas tentarem comunicar, a (re)pensarem tudo o que sempre tomaram como certo de forma a que se possa eliminar divergências e a privilegiar se a partilha. 

Libertar o "solar plexus" como diria certamente um entendido nas matérias de Yoga. 

Retornando ao início do texto, se pudesse voltar atrás no tempo, eu retornaria até mesmo ao período da civilização grega para ver como todos os princípios civilizacionais foram deturpados ao longo dos séculos.

 A televisão e os média provocam atualmente em nós o mesmo efeito reversivo que a igreja provocava nas pessoas da idade das trevas mas a verdade é que por vezes o sistema parece estar prestes a arrebentar pelas costuras, as pessoas não aguentam mais. Podemos talvez assim estar prestes a entrar numa nova era com o finalizar anunciado da antiga, na forja de toda uma nova "civilização grega" em que seja possível reaprender de novo todos os princípios básicos de uma civilização.


De volta a Amsterdam, durante a tarde junto ao Damrad D. mostrou-me onde se podia alugar bicicletas a um preço relativamente acessível a melhor maneira de conhecer esta cidade era de facto andar de bicicleta e interagir com os locais, a bicicleta holandesa tem uma estranha forma de se guiar. Para se travar é preciso pedalar ao contrário o que pode causar alguma confusão ao início, houve uma vez por isso mesmo que estive quase a bater num carro enquanto saía do Vondelpark. Trazia um pouco de erva que tinha comprado num coffe-shop onde trabalhava uma bonita mulata com o seu penteado à Bettie Davis que com a sua voz tranquilizante recomenda a experimentar Sensimilla. Sentei-me no coffe-shop aonde era o único cliente, tratava-se de um espaço igualmente agradável assim como a música e tal como a voz da "Bettie". Tudo isto levava-te facilmente a fluírem, permanecia sentado com a cabeça e as costas encostadas na parede, olhos semicerrados mantendo um sorriso tranquilo para a empregada e todo o mundo de repente me parecia de facto um lugar melhor naquele momento. Encontraria alguma paz de espírito também no dia seguinte, estava deitado na relva do Vondelpark  e enquanto enrolava mais um joint daquela sensimilla ( compraria mais para levar) seguia observando uns músicos de rua a tocar, desta vez dois instrumentistas de sopro e uma cantora de baixa estatura, carismática e com uma voz vibrante que conseguia superar todo o frenesim das pessoas que por ali passavam, umas de bicicleta outras a passearem os seus animais. Foi ali que encontrei o meu momento de paz no caos de Amsterdam. Estive hospedado numa pousada cristã chamada The Shelter que era a mais barata das pousadas na cidade que tinha conseguido encontrar numa lista de pousadas. Um tipo húngaro que lá trabalhava, com o seus cabelos compridos e o bigode igual a Átila o Uno, metia-se constantemente comigo perguntando-me de onde era, isto enquanto estava sentado na parte de cima do meu beliche tentando ler um livro qualquer que não me recordo agora. Na noite antes tinha estado a ver um jogo qualquer do Ajax no Hill Street Blues Bar, com 2 americanos que não percebiam nada de futebol europeu, no meio da confusão do bar íamos tentando entender o que é que distinguia o futebol europeu do futebol americano. Já bastante embriagado e ainda stoned mas com nítidas dificuldades em manter o controle cheguei assim à pousada, a recepcionista polaca que conheci durante a tarde quando resolvi enviar postais para o Ivo (o tipo do norte que tinha conhecido durante a minha estadia em Barcelona).A recepcionista após uma breve conversa resolveu dar-me um livro qualquer , tipo “O Sentinela” em Portugal que apregoava entre outras coisas à importância da família, ajudar os “ceguinhos” a atravessar a estrada, etc...sempre afável no trato via-se que se esforçava por manter uma postura imaculada, sorria timidamente e em desaprovação cristã cada vez que eu lhe falava em algo que a poderia querer fazer desencaminhar. Foi nítido o seu olhar de reprovação para a colega, quando ambas me viram chegar nessa noite e no dia seguinte o estranho rapaz húngaro só se limitava a sorrir para mim e a dizer com o seu sotaque dos cárpatos "You're crazy,you´re crazy...we needee to go oute man, have some drinks go to the girrless...man you're crazy" dizia me ele enquanto arrumava as toalhas nos restantes beliches do quarto. Nunca cheguei a sair com o "Átila" pois a partir daquela noite resolvi distanciar-me das pessoas da pousada, No entanto na sala comum onde todos costumávamos tomar o pequeno almoço gostei de conhecer um estudante de arquitectura de San Diego que me falou bastante sobre a costa californiana e descrevendo me o famigerado Big Sur (parte da Costa Californiana que aparece descrita nos livros de Henry Miller e Jack Kerouac) gostei também de um rapaz africano, dos Camarões, muito bem disposto, com um sorriso radiante do tamanho do mundo, tivemos o nosso belo momento de conversa enquanto ouvíamos Bob Marley No seu mp3 e cantarolávamos para um grupo de teenagers americanas que estavam ali sentadas. Sentado, e muito atento a tudo, estava também um rapaz da República Dominicana, depois da conversa com o americano ambos começaram-me então a fazer perguntas sobre o meu país ao que eu ia respondendo com entusiasmo. A partir de determinado momento eles já não pareciam interessados no que dizia, apercebendo-me de tudo isso, nem por isso conseguia resfriar o meu discurso, já que as americanas pareciam por sua vez estar atentas e sorridentes a tudo ao que eu dizia. A noite de despedida em Amsterdam nos planos estava a ida a um concerto da banda belga dEUS no salão de concertos Paradiso, só que infelizmente quando já estava tudo nas filas à espera do concerto, o mesmo seria cancelado à ultima hora devido a problemas de garganta do vocalista, antes de regressar para a pousada e  enquanto passeava-me pelos canais pela última vez um vagabundo começou a cravar-me trocos, tentando mostrar-se mais poliglota do que realmente era, acabei por não ceder aos seus constantes e quase insuportáveis pedidos, quando pensava ter me visto livre dele, sentei me num banco perto do Damrad para enrolar um cigarro, eis que outro tipo ainda mais estranho que o anterior limitando apenas a sentar-se mesmo ao meu lado, calado com um sorriso, sem proferir uma palavra, só sentia a sua respiração quase suspensa e atenta a mim...a paranoia da erva dos coffeshops fazia sentir se mais nestas ocasiões e por isso levantei-me imediatamente.

Durante o último dia assisti a um despejo de uma casa de okupas com todo o aparato da polícia de choque, com os escudos, bastões e capacetes em contraste com um grupo de cerca de 20 anarkas magrinhos que se limitavam a fazer gritos de ordem, isto tudo com os média a tentarem não perder pitada e um helicóptero sobre visionando toda a operação através do espaço aéreo. Achei tudo aquilo ridículo e quase surreal para um país que tanto vendia a imagem de liberal e permissivo, com talk shows em horários nobres, em que várias personalidades da televisão experimentavam todo o tipo de drogas existentes, relatando depois os efeitos em directo, um verdadeiro prato de estupidez servido pelos média holandeses, em que as “vedetas televisivas" serviam de cobaias, tudo transpirava a hipocrisia e a máscara do controle policial caía ali naquele preciso momento, o que fazia me aperceber de que Amsterdam apesar de ser uma cidade fascinante, a Veneza do Norte como alguns a chamavam, não era exactamente o reino dos "Paraísos Artificiais" que idealizamos durante a adolescência.

A aventura terminou quando optei por ir para o aeroporto por volta das 03h00 da manhã terminando assim com os meus quase dois meses de viagens, na minha mente já não pensava sequer em português, transportava comigo uma miríade de rostos e idiossincrasias , sentia-me forte pois havia sobrevivido a tudo sempre com poucos meios. Perfeita seria igualmente a companhia no avião para Faro. Era um feriado importante na Holanda e existia habitualmente um número razoável de holandeses já de uma certa idade que se deslocam nessa altura ao nosso país, atraídos pela qualidade da vida rústica do turismo rural das vilas alentejanas. Entretanto o senhor que se sentou a meu lado era médico sem fronteiras e foi-me partilhando algumas das suas histórias e experiências de vida que como viveu por exemplo na altura o tsunami na Tailândia. Esta última viagem passou-se fugazmente e despertou-me para a importância da medicina nas nossas vidas e como felizmente para nós continuam existindo estas pessoas, sempre predispostas para ajudar, os verdadeiros "bodhisattvas" entre as pessoas, benditos sejam então, se não fosse o facto de eles também viverem entre nós muito provavelmente já não existiria mundo.

Obrigado.


Ed van der Elsken

O fotógrafo e realizador holandês que retratava a "sua" Amsterdam em 1983, retrato esse que podemos ir visualizando numa série de pequenos vídeos que para já vão estando disponíveis no You Tube.

 Uma verdadeira preciosidade que vale sempre a pena espreitar.







quarta-feira, 16 de julho de 2025

o piolho

Nasceu o piolho, num choro de raiva, entregue por si só às mãos firmes que o seguravam bem alto. 

Voz da feroz alva chorou também por todos os desprotegidos. 
Ácaros e piolhos também são filhos de gente. Um bem haja a eles por isso mesmo. 
Para todos esses filhos e filhas do desconhecido.
Que urgem desesperados em serem alguém neste jardim à beira-mar plantado.
Pois nunca haverá uma meia poesia que nos despeça dessa nossa burguesia e de todos os seus edénicos privilégios. 
Admirando sempre, a beleza inimitável, que age entre todos os actos de escolha. 
Actos que nos levam a ser alguém. Sem pressas nem idade. 
Crescer nesta sociedade é como crescer numa masmorra. 
Em nome da vida apenas e só. Vamos almejar silêncios de cristal ao sabor dos licores.
E depois retribuir como selvagens para a noite dos corpos. E dancemos. Dancemos como ávidos predadores uma vez mais.
Fomos formatados à nascença, de tal forma, que não conseguimos nem sequer mais aceitar o facto de que sugaram nos a alma por completo. 
Na febre de sangue e pavor, exigem nos depois ser alguém mas não valorizam o individualismo nem o individuo. 
A alma não é mais pertença nossa.
E quando a alma não chega, os sodomitas rastejantes saem dos seus buracos, esfomeados, para se aproveitarem dos restos dos corpos esquecidos.
Julgava eu ter já visto tudo, forjado na guerra, qual Aquiles invencível em mil batalhas. 
Julgava eu, finalmente, ter redescoberto aquela voz que nos reconduziria à eficácia de existir, à sageza, pronto-socorro de um estado de espírito inigualável.
No entanto, prometi a mim mesmo, de que não voltaria a atentar contra a vida. Apenas isso.
Almofariz de uma estrela, este corpo porta em si a alma de um piolho com dignidade.

terça-feira, 15 de julho de 2025

a palavra


a palavra é apenas um sonho despedaçado

e não importa o quanto afortunado és

o sol poente está espalhado, entre todas as nuvens,

os pagãos repousam, depois das pilhagens

trémulas como uma flor

as palavras de um poema tentam erguer-se

como uma batalha, um ensaio de amor 

nesse brando poente ao longe que clama

não esqueças a vida

não descrevas tão depressa 

o que mais haverá 

para além do que caminhar no revesso das marés 

porventura saberás tu o que as Parcas tecem?

dizem do receio

ou encanto 

de milhares de crepúsculos 

para reencontrares essa palavra

os deuses partiram? - os deuses partiram

e agora todas as palavras serão sombras de um céu apenas.







domingo, 13 de julho de 2025

o paraíso prometido

 A revelação externa é que somos levados a concluir que o paraíso prometido não é na terra.

Enquanto o trabalhador cria a riqueza, o patrão acumula, alimentado por uma estrutura que normaliza a exploração, manipulação e disfarça as injustiças sociais com a permissa de se tratar da "ordem imposta".

Imposta por uma força hierárquica, hegemônica, que vai mantendo essa mesma hegemonia com uma interdependência financeira. Numa palavra apenas, conveniência.

Para muitos de nós, a relação com a cultura de mercadoria e conforto, é de amor e ódio.
Ou diria antes talvez, de amor e ócio.
Algures neste caminho somos culpados por morder o isco.

Essa paz não é harmonia, mas sim uma anestesia coletiva que visa manter as engrenagens funcionando, enquanto alguns seguem enriquecendo.

Necessitamos cada mais de desbravar caminhos, de tentar encontrar novas formas de comunicar, usemos para tal efeito as ferramentas certas que o universo da rede global nos oferece e dispõe, não para o ócio mas para criarmos uma nova "inter independência" colectiva.
Se desejarmos realmente fugir ao paraíso globalizado, ou à eterna promessa de um.
Que nunca chega a se realizar, claro.
Imagine-se o rato, na roda, girando e tentando, girando e tentando...almejar o desejado biscoito.


with louder silence
our words toil
caressing a conscience
to blossom in this native soil

scars
once backed by broken promises now are a dawn
to the shadows of our own province

lords in the mud

Relembrando como me tornei quase acidentalmente vocalista de uma banda, devo confessar que inicialmente até fiquei bastante reticente ao aceitar o convite do meu amigo Félix, pois queria dedicar me a fundo ao meu projeto Lobos Lusitanos, que entretanto tinha ficado como projeto a solo quando o Lígio resolveu abdicar de continuar no mesmo. 
Para além disso já tinha começado a ensaiar como baixista numa outra banda que nunca avançou.
Um dos motivos pelo qual fiquei reticente eram os riffs do Félix que na verdade achava enfadonhos na fase inicial, embora reconheça que o rapaz nunca rejeitou a responsabilidade de tomar conta das rédeas da banda tornando se o principal mentor da mesma, let's say it...tendo em conta a sua maturidade fora do vulgar, pois as duras circunstancias da sua vida haviam-no forçado a deixar a escola cedo para ir trabalhar, era a pessoa mais habilitada para tal sem dúvida. Como que um irmão mais velho e maturo de 3 tipos que ainda nem sequer tinham a maioridade. Penso que o João Reis teria o quê?! 14 anos na altura. 
E só de pensar que o tipo nem conseguia acertar com os riffs ao inicio.
Mas de alguma forma todas as "duras" que o outro João (Branco) lhe dava às vezes, mexeram com ele, tanto que se inscreveu nas aulas de guitarra com o mestre Tuniko Goulart. O toque do virtuoso professor de guitarra brasileiro faria se sentir apenas numa questão de meses. E a evolução de JR seria brutal.
Mas, o que mais me revolva ao fazer uma retrospectiva desta banda é que quando entrei e nem levava a coisa a sério ainda, foi paradoxalmente quando demos o maior número de concertos, todos iam nos ver e nos apoiavam...e na verdade não tocávamos um caralho.
Todos os membros da banda, ao inicio simpatizavam mais comigo do que com o anterior vocalista, e ele também não era muito assíduo, então o que acontecia era que na sua ausência muita das vezes eu improvisava com o micro. Quando o vocalista deles adoeceu, apenas a umas poucas semanas do tão ansiado festival denominado de "Algarve em Chamas" foi a mim que recorreram para não terem que declinar o surpreendente convite do Bruno Correia (In Tha Umbra) o organizador do evento. Eu aceitei ir, mas apenas e só após alguma insistência por parte deles e com uma condição apenas, de que tocássemos um cover à minha escolha. 
E a cover que escolhi foi a "Deathcrush" dos Mayhem. 
Na verdade sentia que éramos maus, muito maus ainda. Maus, mas não no sentido que éramos uns tipos beras...mas sim, que não tocávamos nada e depois então para compensar, tentávamos parecer um pouco mais beras do que realmente éramos. 
A meu ver, esse era o segredo da cena "trve", muitas vezes o pessoal agia como bera e fudido para disfarçar as suas limitações musicais. 
Só que eu ainda não o sabia, não tinha ainda a noção desse factor. 
Embora, tivesse a noção suficiente para achar que ainda não estaríamos preparados para tocar ao vivo, quanto mais abrir um festival com aquelas bandas todas.
Daí a minha insistência em fazermos uma cover, sempre daria para disfarçar, um pouco mais essa nossa falta de qualidade. 
O que fica para a história é o que importa, e o que ficou é que para o bem e para o mal aquele acabou por ser o único festival com as principais bandas de metal do barlavento algarvio.
Pouco tempo depois realizou se outro naquele mesmo sitio , só que nós, os Teasanna e os Sad God Said não chegaram a tocar.
Mas isso se calhar, seria uma boa história para contar noutra ocasião.
Os Deep Odium e Necrocult of Kronos, creio que só surgiriam um ou dois anos mais tarde.
Os Inhuman esses por sua vez, talvez já fossem demasiado "comerciais" para aquelas andanças, suponho eu. 
Mas na verdade é que um dos organizadores do festival, membro dos In Tha Umbra, tinha feito parte dos Inhuman, tendo sido depois "dispensado" e talvez por isso creio que pudesse existir algum tipo de ressentimento e rivalidade entre eles.
Faltaram apenas os lacobrigenses Sad God Said. 
Uma banda que muitos pareciam depreciar, embora eu gostasse bastante, talvez também por ter sido mais próximo da malta de Lagos do que eles eram naquela altura.
Ok, e daí que relembrei me agora, o tal organizador que foi dispensado dos Inhuman, tinha uma vez também dado um soco no vocalista deles, por este supostamente ter entornado cerveja para cima de alguns vinys, na bancada em que vendiam os artigos da sua distribuidora. Enfim.
Facto curioso, os Teasanna Satanna deram também o seu primeiro concerto nessa tarde/ noite. ou pelo menos um dos primeiros, se bem me lembro.
E foi no backstage, que, após muito fumo e bebida quando já estava literalmente "anestesiado" o teclista deles me deu animo para ir para o palco. 
A primeira pessoa a vir falar comigo, depois do nosso concerto foi o tipo dos Agonizing Terror. 
Eu só queria mesmo era evitar tudo e todos, achava que tudo tinha sido mau, estranho sei lá...e nisto como que do nada surge me um gajo enorme, com uma sleeve de Morbid Angel e aspecto cavernoso, que impunha respeito visto à distancia, o tipo dirigiu se com a mim e como que quebrando o gelo com maior das simpatias, para meu espanto, resolveu dar-me os parabéns e animo para não desistirmos, pois "ainda éramos novos" e tal. 
Que memória estranha. Outro facto é que aquele local estava cheio de pessoas. 
O nosso querido Algarve tinha sido invadido de metaleiros de todo o país. Mas não só, pois naquela altura os concertos não eram exclusivos da comunidade do metal, vinha muita gente que nada tinha a ver.
Muitos dos meus colegas de escola estavam presentes, a comunidade alemã vizinha do Félix estava presente, etc.
O maior pecado, a meu ver, não só nas músicas que tocamos nesse concerto, mas durante algum tempo foi o de não termos a verdadeira noção de como construir uma canção
Então tentávamos por isso incorporar todas as ideias possíveis numa só música, o que resultava muitas vezes numa autentica mistura de riffs sem pés nem cabeça. 
Depois de uma sequência de 4,5 concertos seguidos, que demos ainda sobre o nome "Raven's Fire" (corvo de fogo...ou algo assim) um nome que eu sinceramente detestava e insistia constantemente para muda-lo. Até porque era um nome que tinha sido sugerido pelo anterior vocalista e eu achava que precisávamos de entrar naquela fase nova com um nome novo. Cada concerto que demos com esse nome, sempre que subíamos para o palco eu dizia - "Boa noite, nós somos os "Ravers on fire". 
O primeiro passo, passou por desconstruir as músicas que tínhamos. 
E da salganhada de riffs, aproveitar apenas uns poucos. Simplificar processos.
E quando as músicas ainda não tinham nome, dar nome às músicas era o meu papel. 
Mas antes que me surgisse algum nome, inventávamos, por isso mesmo nomes para os riffs, "o riff feliz", "o riff caralhudo", etc
A primeira música que fizemos sobre o nome "Lycanthropia" foi a "lords in the mud". 
Era claramente um novo capitulo na banda. E nesta música eu contribui com riffs, JR,JB e Félix também.
Um dos riffs que mais me marcou, nessa música, era um riff a que tinha baptizado de "orgasmo", feito pelo JB. Chamava lhe assim porque era "a abrir" e entrava depois um dedilhado todo gloomy, em que tentava encaixar algumas letras com voz "limpa, ou cantada digamos assim, e o JR tocava umas notas por cima com um efeito marado de pedal chamado "flanger". 
O "orgasmo" ao inicio parecia me um pouco rip off a Gorgoroth, mas a verdade é que curtia tanto o riff que essa sensação cedo desapareceria,  talvez fosse o riff mais black metal que alguma vez tivéssemos feito. 
E porquê lords in the mud?! Na verdade, é que durante algum tempo não consegui encontrar uma explicação racional.
Tentei como que "psicanalizar-me"- antes de escrever este texto tendo surgido várias hipóteses...a primeira, talvez derivasse do facto de ser um Tolkien geek na altura e me tivesse lembrado da cena dos hobbits, a caminharem com o Gollum entre pântanos lamacentos e pestilentos a caminho de Mordor. 
Ou então, talvez apenas me tivesse lembrado do famoso clip dos Sepultura "Territory". Não sei.
Pensei nessas duas hipóteses, mas na verdade e digo isto com todo o despretensiosíssimo e humildade possíveis, é que eu acho que era mais uma critica para a realidade da cidade em que crescemos. 
Depois daquela sequencia de 4 concertos durante algum tempo não conseguíamos tocar em lado nenhum e principalmente na nossa cidade, isto num período próspero e raro de concertos frequentes, até por causa da criação de um palco para esse efeito -  no principal ponto de encontro dos adolescentes naquela altura, que era o Skatepark de Portimão.
Ao meu ver, creio que éramos como que "ovelhas negras", os renegados de uns "eddie vedder's wannabes" e de toda aquela geração grunge, que poucos anos mais tarde, se tornaria também na geração do "nu metal" e "metalcore". 
E, por isso nunca conseguimos ir lá tocar. 
Outra memória que me ocorre de um dos nossos concertos, o do refeitório da minha antiga escola básica onde tinha passado os primeiros anos da puberdade e apenas poucos anos depois, lá estava eu, de cabelo mais comprido, calças justíssimas azuis, t shirt branca com a replica do logo da Marlboro, só que a dizer "Marijuana, 20 filter joints" a sair da casa de banho, limpando o suor os restos a álcool e vomitado do rosto para cumprimentar uma antiga professora - não atrevendo me sequer a perguntar lhe se tinha gostado do concerto ou não, porque na verdade sabia que tinha sido uma autentica revolução de caos e cacofonia.
O meu pai, por sua vez só veio a descobrir que estava numa banda, quando a filha de um colega de trabalho dele fez-lhe o relato completo dessa noite. Essa rapariga era irmã de um dos bikers mais conhecidos da cidade, e que tinha sido um dos impulsionadores da construção do tal Skatepark. 
A cidade, por esta altura era vista como uma espécie de capital do BMX. 

Havia uma música que começava com o meu grito - " Show me blood!!" Já não sei sinceramente, se foi por esse motivo ou não, mas naquela noite uma rapariga subiu ao palco e desatou a derramar uma garrafa de corante rubro para cima de todos...agora que penso nisto, vem me a imagem estranha e tresloucada, em que alguns também subiram ao palco todos encobertos por aquele sangue falso. 
Parecia quase uma cena de canibalismo.
Eu limitava me a observar tudo, quase como que incrédulo.
Tudo isso causou forte impressão, éramos adolescentes e naquela altura não havia redes sociais, fosse para se investigar acerca da vida dos outros ou não, o social media a meu ver retira a aura de mistério às pessoas. Todos os artistas de metal que me interessavam eram enigmáticos, pouco sabíamos acerca de quem eram e isso sempre me agradou. Na verdade sempre fui um tipo recatado, fazendo me por isso alguma confusão, como o simples facto de muitas vezes quereres só estar no teu canto, a viver a tua vidinha em paz, isso também possa ser ofensivo. Lembro-me quando tínhamos 12,13 aninhos, eu e os rapazes da escola perto da minha casa, nessa altura é que passávamos o tempo a inventar histórias a respeito de pessoas que não conhecíamos. E como que estranho twist a maioria dessas pessoas se tornavam quase sempre depois meus amigos mais tarde. Como se tivesse um inexplicável magnetismo para os renegados.
Quando surgiu o Marilyn Manson - se bem me lembro, foi com o badalado boato das costelas, só para citar um exemplo.
Comigo surgiu, entre outros, o boato de que iria suicidar me aos 33 anos, só que não me lembro de ter dito tal barbaridade. 
Quanto muito tê-lo-ei dito bêbado, numa brincadeira, que terá sido interpretada fora de contexto. 
O Glen Benton, dos Deicide, dizia isso muitas vezes, para causar escândalo na comunidade cristã. Outros há que terão mesmo levado isso a fim. Não vou dizer aqui nomes. 
Por todos os motivos, parecia haver um certo receio de nos convidarem para concertos.
Parecia haver receio acima de tudo de mim. Muito sinceramente.
Para além, de que nunca tivemos nada em comum com as restantes bandas daquela cidade. 
Daí o nome "lord's in the mud", porque no fundo eu sentia essa nossa evolução como banda a ser ignorada por todos, numa cidade que não só rejeitava e descredibilizava constantemente o nosso esforço como que, de certa forma, até difamava. 
Embora, admita, que se calhar a minha reputação como desordeiro e caótico também não tivesse ajudado em nada.


Hoje em dia, até acho que daria um nome fixe para uma canção "Doom/Stoner/Sludge...whatever" ou mesmo para o nome de uma banda.

we, alien lords in your mud world/ 
we grow in secret wisdom/ 
we rise from the mouthfull of our own spoiled hearts













post mortem

recitei versos, 

no reverso da tua identidade 

revesti me com o teu fantasma, 

na natureza morta do próprio sonho 

à luz 

da beleza nupcial da noite

esperei por ti 

nas lúgubres horas

que brindavam me

com todo o erotismo ancião

do teu acervo de prazeres



no teu livro de memórias 

descreveste me - como um viajante ao acaso

disseste me  - de que nunca de mim te irias separar

talvez por isso quisesse me eternizar 

para precaver a decepção 

e a lenta erosão da história 

não havia representação, nem submissão

no artificio da inconsistência

lá onde se quebram as promessas de amor 

e com sudários se cobrem as palavras


filhos do breu, na dúvida do dilúvio da escuridão

esses poemas posteriormente ficarão escritos nas nossas lápides. 


quarta-feira, 9 de julho de 2025

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse

Lembro me que até já conhecia Maiden e AC/DC mas no verão que conheci os Metallica foi quando pensei realmente em tornar me "metaleiro". Nunca tinha conhecido nenhum por isso resolvi apenas tentar imitar los.

Os 4 Cavaleiros do Apocalipse do Kill em All, tinham amadurecido e no meio daquela vestimenta preta, havia a crença de representar o luto pelo seu baixista e a meu ver maior génio criativo. Quando os conheci tinham um "Album Negro".

E vestiam se de negro.
Achava os, por isso tudo, os tipos mais rebeldes do mundo.
Quando voltei às aulas, no ano seguinte vesti também umas calças justas e uma camisola preta . Apenas é só preta. Pulseira de cabedal e o típico cabelinho "à fodasse", para utilizar outra expressão muito vulgar dos anos 90. Lembro me bem de um colega que tinha transitado do ano anterior vir perguntar me com ar de espanto "então mas tu agora és metálico?"(sim pq naquela altura muitos ainda usavam a expressão "metálico"...metaleiro é outra coisa de sec XXI) Ao que eu, com orgulho e de peito inchado respondi-lhe "sou". Havia algum escárnio na forma como esse mesmo colega fazia me essa pergunta e sinceramente eu não queria nem saber. Usei essa camisola com orgulho, tal como disse, fui a todo o tipo de festivais, conheci um número razoável de pessoas não só do metal, mas também do punk, do reggae etc. Troquei correspondência com pessoas de vários países, desde Grécia, Brasil, Israel. Um dia farei aqui uma compilação dessas entrevistas para o projecto "Myth Zine" a fanzine que nunca cheguei a publicar. E até pelo menos aos meus 18, 19 anos fui de facto um "metálico" de corpo e alma. Mas isto foi até começarem a surgirem as primeiras diferenças. Os primeiros interesses musicais fora do metal, as primeiras divergências políticas, tudo parecia motivo para a discórdia . Os mais rebeldes revelavam se cada dia paradoxalmente aos meus olhos tão ou mais conservadores do que quaisquer outras pessoas que na altura conhecia.
E quando desisti das bandas, resolvi assim dar esse capítulo como finalizado, e despir essa camisola de "metálico" de uma forma radical.
Peguei em vários sacos com k7s, demos, fanzines, etc e desatei a oferecer tudo ao desbarato. Nem me preocupei em vender...apenas desejava um corte radical com tudo.

Acho que foi mesmo a primeira e única vez na vida que disse com orgulho, pertenço "a algo", de resto nem metaleiro, nem satânico, nem cristão, nem hare khrisna, nem punk, nem nazi, nem comunista.
Eu sou eu, só isso, amálgama de vários interesses.

Vivi sete vidas diferentes no entretanto.
E ao meu ver, há malta daquele tempo que continua ainda a ver tudo a preto e branco.
A música, para mim, de certo modo é um pouco como o alimento da alma.
Esta torna-se parte de mim, faz parte dos meus gestos, das posturas, da forma de comunicar, etc.
Imagine-se um tipo auto destrutivo como eu era só ter ouvido depressive sounds ao longo destes anos todos, bem se calhar já cá não estaria.
De vez em quando tornam se necessários outros nutrientes.
Para renovar a alma, torna-se necessário um outro tipo de alento.
Como uma terapia, no entanto, uma ou outra em excesso podem tornar-se igualmente tóxicas.
Para o equilíbrio emocional ambas as vertentes tornam-se por isso essenciais.
Por vezes ter que voltar a expelir a raiva, tristeza, revolta, etc é o caminho certo.
Pode até ser o único caminho.
Estes factores depois é que determinam os géneros musicais que me interessam. E não o contrário.






terça-feira, 1 de julho de 2025

Henry Miller - Trópico de Cancer


Henry Miller também passou por um período muito difícil em seus primórdios, quando decidiu acreditar em uma carreira como escritor quando se mudou para Paris, numa época em Paris ainda era o epicentro de todos os movimentos artísticos. 

O contraste com o primeiro livro de Hemingway, cuja trama se passa igualmente em Paris (Paris est une feste) e sensivelmente escrito na mesma altura, é ,na minha opinião, impressionante. 

Este foi também o seu primeiro romance, afirmo-o sem certezas, mas só terá publicado antes um ensaio sobre o poeta francês Rimbaud, creio eu.