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terça-feira, 17 de julho de 2012

Diários de Bordo - Brugges (ela chamava-se Betty)

O comboio partia de Paris. todas as suas imagens eram agora fragmentos de superstições ao ritmo das sextas feiras. deus tornava-se assim presente entre todas as palavras órfãs. esse indolente e carnal deus que hoje resolveu aparecer, como um vulto no horizonte vindo até nós seduzido pelas sórdidas memórias. ínfimas palavras floresciam, vagas e difusas como sempre...caros desprezados filhos e filhas da vontade do amor. Optei por isso, em vez de me perder nas memórias das imagens das belles femmes parisienses por voltar a focar-me aos poucos no comboio e nos rostos de que me tinha tentado abstrair olhando pela janela. As ruas precisam de mais luz, pensava eu relembrando Barcelona e o dealer chileno que só fazia o que fazia porque sonhava em tirar a sua companheira brasileira da prostituição. A verdade é que são estas as canções que nunca ninguém se dispõe a ouvir… e rindo, rindo sarcasticamente do drama nas alturas em tudo te parece estranho como um soco no estômago ou como o efeito retardado de uma qualquer droga desconhecida. Só conhecia o sul de França e as paisagens nocturnas de Langedoc-Roussilon e agora novas e dispersas paisagens se apresentam assim num lento descortinar distante de tudo o que te é familiar. Um novo começo...talvez digo eu... Pensamos tantas vezes no processamento dos dias até que a morte se sature de nós. Pensamos em ser. Nunca apenas em parecer. Domar o mundo. Ao mesmo tempo que somos tomados por toda uma vontade indomável de loucura. Queremos ver tudo num só vislumbre, sentir tudo de forma translúcida nos olhos da pessoa amada. No entanto dessa plenitude perdura sempre apenas uma réstia de memórias insípidas que te acompanharão nas tuas viagens. Nunca consegui entender realmente o motivo porque se viaja, nem sei se haverá necessariamente algum motivo mas a existir seria certamente este o tal segredo que todos eles parecem aqui ignorar enquanto me observam. Haverá no entanto sempre algo mais...algo efémero e triste na forma em como todas as pessoas cruzam-se e separam-se nesta linha da vida. Senti-o novamente, por exemplo quando mudei de comboio no norte de França ao despedir-me das duas espanholas de Andaluzia que foram a companhia em grande parte da viagem desde França até à Bélgica...eram duas estudantes de Erasmus que das quais não me separaria sem antes lhes prometer ir visitar-lhes a Málaga. Mais uma das inúmeras promessas que deixarei por cumprir. Sentindo tudo novamente sem o esperar enquanto saía do comboio, como Jean Pierre Léaud num qualquer filme de Truffaut. Com um qualquer filho esquecido de uma obstinada esperança num sonho sereno em fim de tarde solarengo. Era Nord-Pas-de-Calais que contrasta com o clima quase sempre sombrio que encontrei em Paris. Não que o mesmo clima não fosse o mais indicado para a cidade em questão mas esta mudança repentina de cenário era uma felicidade espontânea que nos transportava pela cidade e através deste clima de uma primavera de Outubro. Sentei-me no parque fumando e apercebi-me de quanto eram diferentes as fachadas das casas e o formato das ruas. Era a característica arquitectura flamenga. Convém referir que Lille na língua flamenga se pronuncia Rijsel. E Rijsel tem corpo e alma de uma cidade belga embora mantenha uma identidade francesa. Por sua vez quando entrei no simpático país belga tinha em mente sair em Gent mas, improvisando um pouco não resisti ao apelo que Brugge me fez pela janela, não hesitei quando saltei do comboio. Pedi um mapa da cidade ao vislumbre do primeiro quiosque que vi à saída da estação e percorri toda a cidade em sentido diagonal. A primeira impressão dos belgas foi muito positiva. Estava habituado a lidar com holandeses e estes sempre desprezavam um pouco os seus vizinhos belgas, a rivalidade entre ambos os povos pelo que parece assim o obrigava. Os belgas por sua vez transpareciam me sempre a ideia de tipos humildes. Mas a grande surpresa estar-me-ia reservada no centro ao dar me de caras com uma pousada junto aos canais na parte antiga da cidade. Desenhavam-se sorrisos entre as conversas de bar e entre as cervejas belgas e os fumos dos cigarros, onde gostei de ouvir o português falado pela primeira vez em semanas através de uma bela brasileira de Belo Horizonte que conversava com duas espanholas que por sua vez planeavam ir a Lisboa. Fiz a minha primeira deambulação pela cidade conversando com um mexicano chamado Robélio e um canadiano chamado Stuart. Ambos viajavam juntos desde Bruxelas e Stuart já se tinha comprometido a substituir a pequena e simpática rapariga loira de dreadlocks da recepção que desejava mudar-se para Inglaterra juntamente um outro tipo da pousada. Stuart tornara-se chato com os seus constantes interrogatórios no que à cultura musical dizia respeito por sua vez Robélio que ia mantendo o seu low profile falava-me sobre o seu país e das viagens que fez com amigos pelos Estados Unidos. Ficava cada vez mais interessado no que ele tinha a dizer em contraste com o discurso sempre pretencioso de Stuart que já apenas praticamente ignorava. Com é que estes dois se davam tão bem e viajavam juntos já há alguns dias era o que me intrigava. Quando regressei à pousada e enquanto me barbeava num lavatório no nosso quarto misto reparei que uma rapariga observava-me atentamente. A primeira coisa que me perguntou foi "Do you do Yoga?!".Contou-me depois a sua história de vida e disse-me que tinha vindo de umas férias na zona da Baviera com o namorado, só que ele teve que voltar mais cedo. Através da sua face rubra e meio embriagada o seu discurso atabalhoado aos poucos tornava-se mais ternurento aos meus olhos. Era transparente de uma forma a que já não estava habituado. Deixei-me facilmente seduzir por ela. Fumamos os nossos cigarros enquanto observamos o luar no pátio da pousada. Sempre com sorrisos cúmplices, sempre com vontade de algo mais. Fomos dormir. No dia seguinte antes de eu ir para Gent ela contou-me uma história de uma cantora italiana que se suicidou e cujo o nome não me recordo agora e na despedida cantou-me a canção dessa mesma cantora, ela estava na sua bicicleta e eu ouvia a de mochila às costas. Parti assim com o peso de mais uma despedida sobre os meus ombros e ligado de novo ao mundo à minha frente. Ela chamava-se Betty.


 





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